OPINIÃO
Conceituando a Páscoa
Domingo, 31 de julho de 2022
Caríssimo ledor(a), de modo geral, a liberdade religiosa pode ser definida como a garantia do livre exercício de professar qualquer religião. Parece uma expressão auto explicativa, mas sua aplicação pelos Estados nacionais e suas percepções e usos políticos por grupos sociais é muito variada. Em termos sociológicos, jurídicos e filosóficos, a liberdade religiosa resulta de uma longa história de reflexão e conflitos em torno da própria noção de liberdade. No mundo, em face de alguns eventos como a II Guerra Mundial, a Revolução Cultural, na China, e a derrubada das Torres Gêmeas, nos EUA, observa-se a consolidação da liberdade religiosa como uma agenda global que mobiliza políticos, movimentos sociais e instituições as mais variadas. Sua existência está relacionada à laicidade, mas os Estados podem adotar uma religião oficial e permitir que cidadãos pratiquem outras religiões. Este é o caso, por exemplo, de países como a Dinamarca e o Reino Unido. Ou seja, na prática, o Estado Laico é uma das condições para o exercício da liberdade religiosa, mas não a única. Arranjos sociais e culturais são fundamentais para o respeito, a valorização e a garantia da diversidade e liberdade religiosa em um país. Leis específicas definem quais são os direitos religiosos dos cidadãos em cada país e, normalmente, resultam de embates arrastados, por vezes, ao longo de séculos. No ocidente, a emergência de legislações protetivas da liberdade religiosa é oriunda, principalmente, de questionamentos e oposições em relação à hegemonia católica. Na França, por exemplo, os movimentos anticlericais eram muito ativos ao final do século XIX e início do século XX. Como resultado, em 1905 uma lei instituiu a separação entre Estado e Igreja Católica no país, revogando os termos de uma Concordata assinada em 1801. A nova lei proclamava a liberdade de consciência e a garantia ao livre exercício dos cultos. Não expurgava, com isso, a religião do espaço público na medida em que foram criadas capelanias em instituições como quartéis, liceus, prisões e hospitais, assim como emissões religiosas pelos canais públicos de televisão. As demandas, às vezes violentas, pela retração da religião da vida pública nacional são mais recentes sobrepondo questões religiosas e étnico-culturais como vimos em relação aos símbolos muçulmanos em escolas e repartições públicas. Em Portugal, país de forte presença católica na Europa, dispositivos legais sobre liberdade de culto são de 1911 e estudos recentes apontam que, à despeito da legislação, a hegemonia cultural, política e econômica da Igreja Católica é evidente ainda hoje, assim como diferentes preconceitos envolvendo novos grupos religiosos ocasionando, muitas vezes, crimes. Na América Latina são recentes as legislações que passaram a garantir o livre exercício de culto. No continente, os evangélicos se mobilizaram historicamente em defesa da liberdade religiosa. Na Colômbia, a atuação política de evangélicos na Assembleia Constituinte de 1991 e suas ações ao longo desta década baseavam-se em demandas por igualdade religiosa, pressionando o Estado para que protegesse as diferentes expressões existentes no país. No Chile, o catolicismo foi religião oficial do Estado até 1925. Somente em 1999, o então presidente Eduardo Frei Ruiz-Tagle estabeleceu a igualdade legal entre a Igreja Católica e demais grupos religiosos (Lei Nº 19.638). O estabelecimento do primeiro dispositivo legal sobre liberdade de culto no Brasil data da primeira Constituição republicana. Mais precisamente, no Art. 72 da Constituição Federal de 1891. Nele podia-se ler: “A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade”. Na apresentação dos termos dessa liberdade vemos ao menos quatro parágrafos que advertem sobre a laicidade do Estado, jogando por terra a exclusividade da Igreja Católica no oferecimento e gestão de serviços públicos. Foi em 1891, portanto, que “§ 3º – Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum; § 4º – A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita; § 5º – Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis; § 6º – Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”. Na Constituição de 1988, atualmente vigente, reforça-se a laicidade do Estado e a liberdade religiosa no Brasil em seus artigos nº. 5 e nº 19. Em todos os casos, a liberdade religiosa é exercida em relação a outros direitos. Sendo assim, limites legais são dados a ela. Casos muito recentes no Brasil chamaram atenção da imprensa nacional e internacional. Um exemplo foi o do Projeto de Lei da Câmara nº 122/2006 que ficou conhecido como lei anti homofobia. Políticos e líderes religiosos contrários à tramitação desta lei argumentavam que ela infringia a liberdade religiosa na medida em que tornava crime o pronunciamento público de crenças e valores de algumas religiões, principalmente cristãs. Os embates foram inúmeros e a proposta foi arquivada. Mas o acalorado debate rendeu inúmeros desdobramentos, formação de alianças e a tentativa de emplacar que no Brasil vivemos um “preconceito reverso”, já que esta legislação expressaria uma intolerância da minoria em relação à maioria cristã configurando uma cristofobia. Outro exemplo foi o caso analisado pelo STF referente ao abate religioso de animais em casas e terreiros de umbanda e candomblé. Grupos e organizações da sociedade civil, fundações, etc. se levantaram contra o prosseguimento desses abates chamados na grande mídia de “sacrifícios”. A violação dos direitos dos animais foi mobilizada por alguns atores com vistas a limitar a liberdade das religiões de matriz afro-brasileira continuarem com tais práticas tradicionais. Estes e outros casos eclodem de tempos em tempos, tomando a agenda pública nacional arrebatando mentes e corações na defesa deste ou daquele grupo. Embora o registro de casos de intolerância religiosa no Brasil tenha aumentado nos últimos anos, coincidindo com o fim do mito da convivência pacífica entre as religiões no país e com políticas públicas de combate a este tipo específico de violência, as estatísticas internacionais identificam o Brasil como um dos países no qual se teve avanços na direção da garantia da liberdade religiosa, sobretudo no contexto da pandemia de Covid-19. Segundo dados da Aid to the Church in Need, Fundação Pontifícia com sede no Vaticano, sim, a liberdade religiosa no Brasil aumentou, em parte pela determinação do governo federal de tornar as religiões serviços essenciais no país. A ACN lança relatórios sobre liberdade religiosa no mundo a cada dois anos. Em 2021, consta em seu levantamento que a liberdade religiosa é violada em quase um terço dos países do mundo (31,6%) onde vivem dois terços da população mundial. Num total de 196 países, 62 enfrentam violações muito graves da liberdade religiosa. Neste e em outros relatórios internacionais, o Brasil segue como um país “amigo” da liberdade religiosa. Diante dos inúmeros casos de violência religiosa vindo à público pela imprensa tradicional, pelas redes sociais e nas estatísticas oficiais, resta saber os significados que o termo liberdade religiosa adquire. Se levarmos em consideração as estatísticas produzidas por agências nacionais e internacionais cristãs, podemos afirmar que o Brasil é um país pacífico em termos de conflitos religiosos. Talvez esta seja uma questão de perspectiva. Talvez devamos refletir sobre o que significa neste contexto nacional a liberdade religiosa. Quais grupos estão nela incluídos? Quem historicamente vem falando em sua defesa? A partir de quais recursos? Se o ponto de vista da análise for o preconceito religioso contra cristãos, sim, a violência religiosa no Brasil é diminuta. No entanto, se tratarmos do volume de casos envolvendo religiosos de matriz afro-brasileira o país sai desta “friend zone”, deixando de ser percebido como um país seguro para o exercício de cultos afro. Assim, a evidência que envolve a liberdade religiosa do ponto de vista do senso comum ou mesmo da legislação não sobrevive ao aprofundamento da questão no Brasil. A complexidade desta agenda torna-se cada vez maior diante das disputas entre os atores políticos. Por exemplo, a ação de evangélicos protestantes e pentecostais foi dada como fundamental para a garantia da liberdade religiosa no Brasil. Alguns pesquisadores identificam, inclusive, esta como uma “agenda histórica” do segmento que mobilizou este como um meio de ação contra a hegemonia da Igreja Católica. Aos religiosos de matriz afro-brasileira, a identificação com o tema teria surgido mais recentemente e na forma das ações de combate à intolerância religiosa. Contudo, cada vez mais a liberdade religiosa como afirmação da democracia e combate à violência vem sendo ativada por esses religiosos afro-brasileiros como meio de disputa com os grupos majoritários da agenda em nível global. Ou seja, se as grandes estatísticas e atores a denunciarem as violações à liberdade religiosa são os cristãos, vemos a estratégia de ação global agora sendo mobilizada pelas vítimas históricas do vilipêndio e da violência física e material perpetrada pelo Estado na forma de dispositivos legais pela “manutenção da ordem”, a saber, os religiosos de matriz afro-brasileira. Paz&Bem.
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